Publicado em 1901, no ano seguinte ao da morte de Eça de Queirós, o romance A
Cidade e as Serras foi desenvolvido a partir da idéia central contida no conto
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“Civilização”, datado de 1892. Na verdade, o escritor pretendia publicar uma série de
pequenos volumes em que analisaria flagrantes na vida real. Havia ainda, por parte do
autor, a promessa de que o volume não passaria de quatro capítulos e cerca de 130
páginas. Ao que parece, os editores demoravam muito para editar obras muitos
extensas, dificultadas pelo trabalho de composição tipográfica.
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Em 1895, durante cerca de cinco meses, Eça revisou as provas deste volume e
introduziu inúmeras modificações. Após a morte do escritor, em 1900, os primeiros
capítulos já se encontravam compostos e os demais, ainda em manuscrito, incluindo
alguns capítulos inacabados. Coube a Ramalho Ortigão, grande amigo do escritor,
rever os originais, decifrá-los, revisara as provas já composta e, inclusive, emendar
algumas partes que careciam de sentido.
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Para situar a obra A Cidade e as Serras no contexto das obras de Eça de Queirós, é
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necessário revê-la como um todo. Ao publicar o conto Singularidade duma Rapariga
Loura, Eça foi considerado o iniciador da narrativa realista em Portugal. Em seguida,
escreveu, em conjunto com o amigo Ramalho Ortigão, a novela policial O Mistério da
Est rada de Sintra. Participava do jornal mensal As Farpa s que, como o próprio nome
indica, tece inflamados artigos propondo reformas e satirizando os costumes, a
literatura e a política de Portugal.
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Após discursar sobre “O Realismo como nova expressão de Arte” nas célebres
conferências do Cassino Lisboense, publicou em 1875, O Crime do Padre Amaro,
romance crítico em que combate a sociedade estagnada e o clero, e coloca em prática
a técnica realista de descrever aspectos psicofisiológicos com riqueza de detalhes. Em
1878, volta-se para a família pequeno-burguesa escrevendo o volume urbano O Primo
Basílio, revendo a educação da mulher, a constituição moral da família e o ataque
ferrenho às instituições burocráticas de Portugal. Produziu, dez anos depois, Os Maias,
ambientado em Portugal e em Paris, focalizando com ironia e sarcasmo as altas
esferas da sociedade, revelando-se mordaz e irreverente no tratamento da política da
vida social e da literatura, com quadros repletos de vivacidade e riqueza estilística.
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Encerra-se aí a sua fase combativa, em que a literatura serve como escudo contra
instituições, e as palavras são a s lanças a serem atiradas com ironia contra Portugal,
numa necessidade de denunciar o que havia de pequeno e estagnado em relação a
outros países, principalmente os europeus. Nesse período, o autor exercita com
perfeição suas técnicas narrativas, manuseia a linguagem com preocupações formais,
analisa os caracteres de suas personagens, lapida seu estilo e vai solucionando seus
problemas de índole literária, percebendo os limites da imaginação e da observação da
realidade.
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Depois de Os Maias, inicia uma nova fase, mais elaborada estilisticamente, e mais
preocupada em da r vazão à imaginação, deixando-a correr mais solta. Assim, escreve
O Mandarim, novela de caráter fantástico colocando “sobre a nudez forte da verdade –
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o manto diáfano da fantasia”, e, pelo mesmo lema, conduz o volume A Relíquia. A
partira de A Relíquia é possível perceber o início de uma nova fase, uma fase em que o
escritor reconsidera sua pátria, abandonando a sátira mordaz com que vinha
retratando a vida portuguesa, substituindo-a por uma ternura quase calma, mais
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sincera, quase uma redenção, um pedido de desculpas por ter escrito romances em
que denunciava o atraso e o provincianismo da terra. A Ilustre Casa de Ramires traz
Eça de Queirós referindo-se liricamente aos grandes valores portugueses: o homem, a
paisagem e as origens históricas; em A Cidade e as Serras acredita na vida simples e
rústica, libertando o bucolismo, valorizando os seres simples, a distância da civilização,
a pureza da vida campestre na mais sincera contaminação romântica. Volta-se para a
descrição das paisagens mais familiares que costumava ver na infância, O primitivo de
A Cidade e a s Serras e o apego histórico de A Ilustre Casa de Ramires compõem os
romances da última fase do escritor, que, juntamente com A Correspondência de
Fradique Mendes, colocam fecho de ouro aos escritos de Eça de Queirós.
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O romance é escrito em primeira pessoa por José Fernandes, um personagem
secundário. O narrador centraliza seu interesse na figura de um certo Jacinto,
descrevendo-o como um homem extremamente forte e rico, que, embora tenha
nascido em Paris, no 202 dos Campos Elíseos, tem seus proventos recolhidos de
Portugal, onde a família possui extensas terras, desde os tempos de D. Dinis, com
plantações e produção de vinho, cortiça e oliveira, que lhe rendem bem. O avô de
Jacinto, também Jacinto, gordo e rico, a quem chamavam D. Galeão, era um fanático
miguelista. Quando D. Miguel deixou o poder, Jacinto Galeão exilou-se voluntariamente
em Paris, lá morrendo de indigestão. D. Angelina Fafes, após a morte do marido, não
regressou a Portugal, e, em Paris, criou seu filho, o franzino e adoentado Cintinho que
se casou com a filha de um desembargador, nascendo desta união nosso
protagonista.
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Desde pequeno Jacinto brilhara, quer por sua inteligência, quer por sua capacidade.
Aos 23 anos tornou-se um soberbo rapaz, vestido impecavelmente, cabelos e bigodes
bem tratados, e feliz da vida. Tudo de melhor acontecia com ele, sendo chamado pelos
companheiros de “Príncipe da Grã-Ventura”. Positivista animado, Jacinto defendia a
idéia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. A
maior preocupação de Jacinto era defender a tese de que a civilização é cidade grande,
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é máquina e progresso que chegavam através do fonógrafo, do telefone cujos fios
cortam milhares de ruas, barulhos de veículos, multidões... Civilização é enxergar à
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Com estes olhos que recebemos da Madre Natureza, lestos e sãos, nós podemos
apenas distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada. Nada
mais! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples de um binóculo de
corridas, percebo, por trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões de geléia e caixas de
ameixa seca. Concluo, portanto, que é uma mercea ria. Obtive uma noção: tenho sobre
ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se
agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os de meu telescópio, de composição
mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canais,
o recorte dos golfos, toda a geografia de um astro que circula a milhares de léguas dos
Campos Elísios. É outra noção, e tremenda! Tens aqui, pois, o olho primitivo, o da
natureza, elevado pela Civilização à sua máxima potência da visão. E desde já, pelo
lado do olho, portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro
realidades do universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a
todos os órgãos e compreende o meu princípio. Enquanto à inteligência, e à felicidade
que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só te peço que compares
Renan e o Grilo... Claro é, portanto, que nos devemos cercar de Civilização nas
máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver.
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Em fevereiro de 1880, Zé Fernandes foi chamado pelo tio e parte para Guiães e,
somente após sete anos de vida na província, retorna e reencontra Jacinto no 202 dos
Campos Elíseos. O narrador presenciou coisas espantosas: um elevador para ligar dois
andares do palacete; no gabinete de trabalho havia aparelhos mecânicos cheios de
artifício; e, enquanto Jacinto escreve para Madame d’Oriol, José Fernandes visita uma
enorme biblioteca de trinta mil títulos, os mais diversos possíveis, dos mais renomados
autores às mais diferentes ciências. A visita termina com uma refeição em que foram
servidas as mais sofisticadas iguarias e um convite de Jacinto ao na rrador que ele se
hospede no 202.
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Zé Fernandes, a partir daí, pôde observar com maior atenção o amigo; suas intensas
atividades o desgastavam e, com o passar do t empo, constatou que Jacinto foi
perdendo a credulidade, percebendo a futilidade das pessoas com quem convivia, a
inutilidade de muitas coisas da sua tão decantada civilização. Nos raros momentos em
que conseguiam passear, confessava ao amigo que o barulho das ruas o incomodava ,
a multidão o molestava: ele atravessava um período de nítido desencanto. Alguns
incidentes contribuíram sobremaneira para afetar o estado de ânimo de Jacinto: o
rompimento de um dos tubos da sala de banho, fazendo jorrar água quente por todo o
quarto, inundando os tapetes, foi o bastante para aparecer uma pilha de telegramas,
alguns inclusive com um riso sarcástico, com o do Grao-Duque Casimiro, dizendo que
não mais apareceria pelo 202 sem que tivesse uma bóia de salvação.
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As reuniões sociais estavam ficando maçantes. Em uma recepção ao Grão-Duque,
jacinto já não agüentava o farfalhar das sedas das mulheres quando lhes explicava o
uso dos diferentes aparelhos, o tetrafone, o numerador de páginas, o microfone... O
criado veio lhe informar que o peixe a ser servido ficara preso no elevador e os
convidados pusera m-se a pescá-lo, inutilmente, porque o peixe a cabou não indo para a
mesa, fato que deixou ainda mais aborrecido o anfitrião.
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Claramente percebia eu que o meu Jacinto atravessava uma densa névoa de tédio, tão
densa, e ele tão afundado na sua mole densidade, que as glórias ou os tormentos de
um camarada não o comoviam, como muito remotas, inatingíveis, separadas da sua
sensibilidade por imensas camadas de algodão. Pobre Príncipe Grã-Ventura, tombado
para o sofá de inércia, com os pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio caíra,
depois de renovar tão brava mente todo o recheio mecânico e erudito do 202, na sua
luta contra a força e a matéria!
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Preocupado, Zé Fernandes consulta o fiel criado Grilo sobre o que está ocorrendo com
Jacinto. O homem respondeu com tamanho conhecimento de causa que espantou o
narrador. Uma simples palavra poderia definir todo o tédio de que era acometido: o
patrão sofria de “fartura”.
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Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris; e na Cidade, na
simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e fort e (como ele outrora gritava, iluminado)
o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver", ele
não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe
valesse o esforço de uma corrida curta numa tipóia fácil. Pobre Jacinto! Um jornal
velho, setenta vezes relido desde a crônica até aos anúncios, com a tinta delida, as
dobras roídas, não enfastiaria mais o solitário, que só possuísse na sua solidão esse
alimento intelectual, do que o parisianismo enfastiava o meu doce camarada! Se eu
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nesse verão capciosamente o arrastava a um café-concerto, ou ao festivo Pavilhão
d'Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um
maravilhoso ramos de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão da
bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu, compadecido,
me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga de ave solta...
Raramente (e então com veemente arranque como quem salta um fosso) descia a um
dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elíseos. Não se ocupara mais das suas
sociedades e companhias, nem dos telefones de Constantinopla, nem das religiões
esotéricas, nem do bazar espiritualista, cujas ca rtas fechadas se amontoavam sobre a
mesa de ébano, de onde o Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda.
Também lentamente se despegava de todas as sua convivências. As páginas da
agenda cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cediam a um
passeio de mail-coach, ou a um convite para algum castelo amigos dos arredores de
Paris, era tão arrastadamente, com um esforço saturado ao enfiar o paletó leve, que
me lembrava sempre um homem, depois de um gordo jantar de província, a estalar,
que, por polidez ou em obediência a um dogma, devesse ainda comer uma lampreia de
ovos!
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Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem fendidas contra
toda a intrusão do mundo, seria uma doçura pa ra o meu Príncipe se o seu próprio 202,
com t odo aquele tremendo recheio de Civilização, não lhe desse uma sensação
dolorosa de abafamento, de atulhamento!
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Certo dia, enquanto esperavam ser recebidos por Madame d'Oriol, José Fernandes e
Jacinto subiram à Basílica do Sacré-Coeur, em construção no alto de Montmartre. Ao
se recostarem na borda do terraço, puderam contemplar Paris envolta em uma nuvem
cinzenta e fria, motivando profunda reflexões, pois a cidade - tão cheia de vida, de
ouro, de riquezas, de cultura e resplandecência, incluindo o soberbo 202, com todas as
suas sofisticações - estava agora sucumbida sob as nuvens cinzentas, a cidade não
passava de uma ilusão.
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(...) uma ilusão! E a mais marga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda
a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade
perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo e se t ornou esse ser ressequido e
escanifrado ou obeso e afogado em unto de ossos moles como trapos, de nervos
trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentauros de chumbo sem
sangue, sem febre, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus, espantado , mal
pôde reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na Cidade findou a sua liberdade
moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa
para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular,
vergar, rastejar, aturar: rico e superior como um Jacinto, a sociedade logo o enreda
em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, prazer, ritos, serviços mais disciplinares
que os de um cárcere ou de um quart el... A sua tranqüilidade (bem tão alto que Deus
com ele recompensa os santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa
batalha desesperada pelo pão ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela
fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres
que tumultuam na arquejante ocupaçã o de desejar - e que, nunca fartando o desejo,
incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos
mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São
como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e
limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a
flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o
interesse, na hora inquietada da defesa ou na hora sôfrega do a ssalto, ata
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apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da
rivalidade ou do orgulho. E o amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses
vastos armazéns com espelhos; onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao
arrát el, como a de vaca! Contempla esse velho deus do himeneu, que circula trazendo
em vez do ondeante facho da paixão a apertada carteira do dote! (...) Mas o que a
Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro
da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada
de idéias e fórmulas que constitui a atmosfera mental das cidades, o homem que a
respira, nela envolto, só pensa t odos os pensamentos já pensados só exprime todas as
expressões já exprimidas; ou então, para se destacar na pardacenta e chata rotina e
trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio,
uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão. (...) Assim, meu
Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e
alcatrão, e o carvão tapa o céu, e agente vive acamada nos prédios com o paninho nas
lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames -
o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem
liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si uma espírito que é passivo
como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é
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Zé Fernandes continuou a filosofar, acrescentando preocupações de caráter pessoal,
indagando a posição dos pequenos que, como vermes, se arrastavam pelo chão,
enquanto os poderosos os massacravam; eles iam às óperas aquecidos, lançando aos
pobres não mais que algumas migalhas. Religiosamente, acreditava ser necessário um
novo Messias que ensinasse às multidões a humildade e a mansidão.
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Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade e os gozos especiais que ele a cria.
O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimento especiais, que só nela
existem! (...) A tua Civilização reclama incansavelmente regalos e pompas, que só
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obterá, nesta marga desarmonia social, se o capital der ao trabalho, por cada
arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável é, pois, que incessantemente
a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno
da Cidade. (...)
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Pensativamente deixou a borda do terra ço, como se a presença da Cidade, estendida
na planície, fosse escandalosa. E caminhamos devagar, sob a moleza cinzenta da tarde,
filosofando - considerando que pa ra esta iniqüidade não havia cura humana, trazida
pelo esforço humano. Ah, os Efrains, os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do
mar humano, só abandonarão ou afrouxarão a exploração das plebes, se uma
influência celeste, por milagre novo, mais alto que os milagres velhos, lhes converter
as almas! O burguês triunfa, muito forte, todo endurecido no pecado - e contra ele são
impotentes os prantos dos humanitários, os raciocínios dos lógicos, as bombas dos
anarquistas. Para amolecer tão duro granito só uma doçura divina. Eis pois a
esperança da Terra novamente posta num Messias!...
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De Schopenhauer a o Eclesiastes: pessimismo
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Como já havia planejado, o narrador partiu para uma viagem pela Europa e, ao
retornar, procurou o amigo e tentou descobrir o que lhe passa va na lama, pois
encontrou-o mais pessimista que nunca, depressão revelada pelas leituras do
Eclesiastes e do filósofo pessimista Schopenhauer. Nestas leituras, encontrava um
certo amparo aos comprovar que todo mal era resultante de uma lei universal e, a
partir daí, encontrou uma grata ocupação - maldizer a vida. Ao mesmo tempo,
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sobrecarregou sua exist ência com fervores humanísticos. Mas de nada adiantava, pois
Jacinto estava desolado. No inverno escuro e pessimista, Jacinto acordou certa manhã
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e comunicou a José Fernandes que esta de partida para Tormes. Decidiu viajar ao
receber uma carta de Silvério, seu procurador, que dizia estarem concluídos os
trabalhos de reerguimento da capela para onde seriam translados os restos mortais de
sues avós que ele nã o conhecera, mas que o 202 estava cheio de recordações.
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Os preparativos para a viagem envolveram uma mudança da civilização para as serras.
Jacinto encaixotou camas de penas, banheiras, cortinas, divãs, tapetes, livros,
despachou tudo para poder enfrentar com conforto um mês nas serras. Enquanto isso;
renascia nele o amor pela cidade.
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Partiram os dois amigos de volta a Portugal. As cidades passavam pelas janelas do
trem: da França para a Espanha, da Espanha para Portugal... Tomado por uma suave
emoção, José Fernandes estava feliz em rever a pátria; Jacinto, aborrecido e enfadado
principalmente porque, em Medina (Espanha), as malas ficaram em compartimentos
errados quando foi feita a baldeação. O narrador, com o intuito de aclamar o amigo,
diz-lhe que a Companhia cuidaria de tudo. E ficaram os dois só com a roupa do corpo.
Enfim, chega ram a Tormes.
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...e ambos em pé, às janelas, esperamos com alvoroço a pequenina estação de
Tormes, t ermo ditodoso das nossas provaçõe4s. Ela apareceu enfim, clara e simples, à
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beira do rio, entre rochas, com sues vistoso girassóis enchendo um jardinzinho breve,
as duas altas figueiras assombreando o pátio, e por trás, a serra coberta de velho e
denso arvoredo.
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Desembarcaram em Tormes, onde o narrador encontrou o velho amigo Pimenta, chefe
da estação. Após apresentar-lhe o senhor de Tormes, indagou por Silvério, o
procurador de Jacinto em terras portuguesas. Começaram entã o outros desastres da
viagem. Silvério não os aguardava: havia partido há dois meses para o Castelo de Vide.
Os criados Grilo e Anatole, aparentemente estavam com as 23 malas em outro
compartimento, não foram encontrados, o trem apitou e partiu, deixando os dois sem
nada. Não havia cavalos para atravessarem a serra, pois Melchior, o caseiro, não os
esperava senão para o mês seguinte. Pimenta arranjou-lhes uma égua e um burro e
ambos seguiram serra cima, esquecendo, por alguns instante, os infortúnios passados
enquanto contemplavam a beleza da paisagem. O pior ainda estava por acontecer: os
caixotes despachados de Pa ris há quatro meses não haviam chegado, e o mais
civilizado dos homens estava totalmente à mercê das serras. Como ninguém os
esperava, a casa não estava pronta para recebê-los, a reforma acontecia devaga r, os
telhados ainda continuavam sem telhas, a vidraças sem vidros. Zé Fernandes sugeriu
que rumassem para a casa de sua tia Vicência em Guiães e Jacinto retrucou que ia
mesmo pa ra Lisboa.
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Melchior arranjou como pôde um jantarzinho, caseiro e simples, longe das comidas
sofisticadas, das taças de cristal, dos metais e porcelanas. Uma comida que serviu
para matar gostosamente a fome dos viajantes. O senhor de Tormes regalou-se com o
jantar que lhe parecera, à primeira vista, insuportável; e o caseiro, diante das
manifestações de regozijo perante a comida, pensou que seu senhor passava fome em
Paris.
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O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o senhor de
Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e minguava... E o meu Príncipe, na
verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância,
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rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango
assado no espeto e da salada aquele apetecera na horta, agora temperada com um
azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: - "É divino!" Mas nada
o entusiasmava como um vinho de Tormes, caindo do alto, da bojuda infusa verde -
um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que
muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de
leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou
Virgílio:
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- Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te canta rá, vinho amável desta
serras?
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Após o jantar, ambos ficaram contemplando o céu cheio de estrelas, passaram a ver os
astros que na cidade não se dignavam ou não conseguiam observar. O narrador ia-se
deixando levar por um contato tão estreito com a paisagem, que em breve surgia uma
identificação total do homem com a natureza e em tudo percebia-se Deus, num claro
processo panteísta muito comum entre os romântico e que Eça passou a assumir.
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- Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
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- Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
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Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre
de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca o possuía trezentos e
oito tratados sobre astronomia, e o saber a ssim acumulado, forma um monte que
nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se
chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importa va a eles que um de nós
fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da
mesma vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos
diversos de um ser único, e as nossas diversidades espa rsas somam na mesma
compacta unidade. Moléculas do mesmo todo, governadas pela mesma lei, rolando
para o mesmo fim... Do astro a o homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo
ao mar sonoro – tudo é o mesmo corpo, onde circula como um sangue, o mesmo deus.
E nenhum frêmito de vida, pormenor, passa numa fibra desse sublime corpo, que se
não repercuta em todas, até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais.
Quando um sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades,
esse esguio galho de limoeiro, embaixo na horta, sente um secreto arrepio de morte; e,
quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno
estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacinto abateu
rijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:
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- Acredita! ...O sol tremeu.
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E depois ( como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó
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luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece, renasce.
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O cansaço vence os dois viajantes. José Fernandes adormece sob os apelos de Jacinto
para que lhe enviasse algumas peças brancas e lhe reservasse alojamento em um bom
hotel de Lisboa. Uma semana depois que José Fernandes havia partido para Guiães,
recebeu suas malas e imediatamente enviou um telegrama para Lisboa, endereçado ao
hotel Bragança, agradecendo pela bagagem que foi encontrada e alegrando-se pelo
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amigo estar novamente gozando os privilégios de seres civilizados. No entanto, não
obteve resposta. Certo dia, o narrador voltando de Flor da Malva, da casa de sua prima
Joaninha, parou na venda de Manuel Rico, e ficou sabendo algo surpreendente através
do sobrinho de Melchior: Jacinto permanecia em Tormes já há cinco semanas. Ao
visitar Jacinto, José Fernandes o encontrou totalmente mudado, física e mentalmente.
Nada nele denunciava um homem franzino; estava encorpado, corado, como um
verdadeiro montês.
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Mas o meu novíssimo amigo, debruçado da janela, batia as palmas – como Catão para
chamar os servos, na R oma simples. E gritava:
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- Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha!
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Pulei, imensamente divertido:
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- Oh Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E a s esterilizadas? E as
sódicas?...
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O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a aparição de
um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente, que uma
bela moça trazia num prato.
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Um homem de bem com a vida
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Era um outro Jacinto a quem o campo já não mais era insignificante. Cada momento
novo era uma nova e alegre descoberta. Enfim, era um homem de bem com a sua vida.
Aproveitando a presença do amigo, Jacinto providenciou a transladação dos corpos de
seus antepassados para a Capelinha da Carriça, agora reconstruída. Zé Fernandes,
hábil observador do amigo, percebeu que Jacinto não se contentava em ser o
apreciador passivo dos encantos da natureza. Ele queria participar de t udo, e lhe
surgiam grandes idéias como encher pastos, construir currais perfeitos, máquinas para
produzir queijos...
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Certo dia, ao percorrer seus domínios, Jacinto conheceu o outro lado da serra: uma
criança muito franzina viera pedir socorro para a mãe agonizante. A partir desse
momento, as decisões de Jacinto tomaram novo rumo, pois ele começou a se
preocupar com o lado triste da serra, e passou a fazer caridade, reconstruir casa, dar
novo alento à vida dos humildes. Em uma das inúmeras visitas que lhe fez o narrador,
Jacinto confessou que pretendia introduzir um pouco de civilização naqueles cantos tão
rústicos. O povo da região começou a agradecer as benfeitorias e logo passou a
circular a lenda que o senhor de Tormes era D. Sebastião que havia voltado para
ressuscitar Portugal.
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Convidado por Zé Fernandes para o aniversário de tia Vicência, Jacinto encontraria aí a
oportunidade de conhecer seus vizinhos, outros proprietários. No entanto, a recepção
não foi aquilo que o narrador esperava. Havia uma frieza por pa rte dos habitantes da
região, exceto tia Vicência que o recebeu como verdadeiro sobrinho. Ao terminarem a
ceia, vieram a saber porquê daquela frieza: eles pensavam que o senhor de Tormes
fosse miguelista como o avô e que pretendia restituir D. Miguel ao poder.
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E só compreendi, na sala, quando o Dr. Alípio, com sua chávena de café e o charuto
fumegante, me disse, num daqueles seus olhares finos, que lhe valiam a alcunha de
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“Dr. Agudos:” – ‘Espero que a o menos, cá por Guiães, não se erga de novo a forca!...’
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E o mesmo fino olhar me indicava a D. Teotônio, que arrastara Jacinto para entre as
cortinas de uma janela, e discorria, com um ar de fé e de mistério. Era o miguelismo,
por Deus! O bom D. Teotônio considerava Jacinto como um hereditário, ferrenho
miguelista, - e na sua inesperada vinda ao solar de Tormes, entrevia uma missão
política, o começo de um a propaganda enérgica, e o primeiro passo para uma
tentativa de restauração. E na reserva daqueles cavalheiros, ante o meu Príncipe, eu
senti então a suspeita liberal, o receio de uma influência rica, novas, nas eleições
próximas, e a nascente irritação contra as velhas idéias, representadas naquele moço,
tão rico, de civilização tão superior. Quase entornei o café, na alegre surpresa daquela
sandice. E retive o Melo Rebelo, que repunha a chávena vazia na bandeja, fitei, com
um pouco de riso, o “Dr. Agudo”.
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Est e jantar serviu de pretexto para o narrador mostrar a mentalidade atrasada da
sociedade serrana e aquilo que a fazia sorrir Jacinto era, na verdade, um abismo entre
a ignorância e o progresso. A serra estava impregnada de uma mentalidade retrógada,
ainda absolutista, enquanto no final do século polvilhavam novas teorias e doutrinas
filosóficas e políticas. Tentou-se ainda um jogo de voltarete para animar a noite, mas a
ameaça de uma a tempestade levou os convidados a baterem em retirada.
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A manhã seguinte estava fresca e clara,. José Fernandes levou o amigo até Flor da
Malva, para visitar sua prima Joaninha que não pudera comparecer à reunião, pois o
pai, Adrião, estava acamado. No caminho, encontraram João Torrado, um velho
eremita que supôs estar diante de D. Sebastião. Esta figura ilustrava o lado da
profundidade do mito na mentalidade simples, saudando Jacinto como um profeta, e
tratando-o como “pai dos pobres”. Nele estão representadas a sabedoria e a
simplicidade do povo.
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E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe comiam a
face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com uma caixa de
lata a tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro, que faiscavam.
Era o tio João Torrado, o profeta da serra... Logo lhe estendi a mão, que ele apertou,
sem despregar de Ja cinto os olhos, que se dilatavam mais negros. Mandei vir outro
copo, apresentei Jacinto, que corara, embaraçado.
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- Pois aqui tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à pobreza.
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O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía cabeludo e quase negro, de
uma manga muito curta.
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E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João Torrado
longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo murmurando:
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- Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!
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Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão, limpou as
barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de lata, e batendo com aponta
do cajado no chão:
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- Pois louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que não perdi
o meu dia, e vi um homem!
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Eu então debrucei-me para ele, mais em confidência:
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- Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios, que el-rei?D.
Sebastião voltará?
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O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo da espalhada barba
sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo a procissão dos seus
pensamentos:
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- Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vai, nem quem vem.
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A chegada a Flor de Malva prepara o desfecho do romance. Joaninha, que não se
apresenta sequer ruma fala na narrativa, jovem de uma formosura ímpar estaria
destinada a ser a senhora de Tormes.
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Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do
passo e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia
mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro
ondeado dos eus belos cabelos, - lindamente risonha, na surpresa que alargava os
seus largos, luminoso olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-
de-rosa, apenas coberta cima uma camisinha, de grandes laços azuis.
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E foi assim que Jacinto, nessa tarde de setembro, na Flor da Malva, viu aquela com
quem casou, em maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé de roseira se
cobrira já de rosas.
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Cinco anos se passaram em plena felicidade por ver correrem por aquelas terras duas
fidalgas crianças, Teresinha e Jacinto. Os caixotes embarcados de Pa ris enfim
chegaram a Tormes e serviam para demonstrar o total equilíbrio do protagonista,
aproveitando o que poderia ser aproveitado e desprezando as inutilidades da
civilização, justificando deste modo a observação feita por Grilo: Sua Excelência
brota ra”. Certamente Jacinto descobrira seus melhores valores: era feliz e fazia os
outros felizes. Algumas vezes Jacinto falou em levar a esposa para conhecer o 202 e a
civilização, mas o projeto, por um motivo ou por outro, era sempre adiado.
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Quem voltou a Pa ris foi Zé Fernandes e lá, sentindo-se abandonado e entendiado,
descobriu uma porção de fantoches a viverem uma vida falsa e mesquinha. Percebeu
que os antigos conhecidos eram seres frágeis e vazios, idênticos entre si e massas
impessoais, amorfas, feitas para gradar ou desagradar os outros conforme seus
interesses. Não suportando a cidade, retornou a Portugal. Este serrano que
anteriormente valorizava os encantos da civilização foi tomado pelos mesmos
sentimentos de Jacinto e confirmou uma simples verdade: no fundo, reabilitou Eça de
Queirós com o seu Portugal.
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Arrastei então por Paris dias de imenso tédio. Ao longo do Bouleva rd revi nas vitrinas
todo o luxo, que já me enfartava havia cinco anos, sem uma graça nova, uma curta
frescura de invenção. Nas livrarias, sem descobrir um livro, folheava centenas de
volumes amarelos, onde, de cada página que ao acaso abria, se exalava um cheiro de
morno de alcova, e de pó-de-arroz, de entre linhas trabalhadas com efeminado
arrebique, como rendas de camisas. Ao jantar, em qualquer restaurante, encontrava,
ornando e disfarçando as carnes ou as a ves, o mesmo molho, de cores e sabores de
pomada, que já de manhã, noutro restaurante, espelhado e dourejado, me enjoara no
peixe e nos legumes. Paguei por grosso preços garrafas do nosso rascante e rústico
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vinho de Torres, enobrecido com o título de Chatêaou-isto, Château-aquilo, e pó
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postiço no gargalo. À noite, nos teatros, encontrava a cama, a costumada cama, como
centro e único fim da vida, atraindo, mais fortemente que o monturo atrai as
moscardos, todo um enxame de gentes, estonteadas, frementes de erotismo,
zumbindo pilhérias senis. Esta sordidez da planície me levou a procurar melhor a ragem
de espírito nas alturas da Colina, em Montmartre; - e aí, no meio de uma multidão
elegante de senhora s, de duquesas, de generais , de todo o lato pessoal da cidade, eu
recebia, do alto do placo, grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer de
gozo as orelhas cabeludas de gordos banqueiros, e arfar com delícia os corpet es de
Worms e de Doucet, sobre os peitos postiços das nobres damas. E recolhia enjoado
com, tanto relento de alcova, vagamente dispéptico com os molhos de pomada do
jantar, e sobretudo descontente comigo, por me não divertir, não compreender a
cidade, e erra r através dela e da sua civilização superior, com reserva ridícula de um
censor, de um Catão austero. “Oh senhores!”, pensava eu “pois não me divertirei
nesta deliciosa cidade?” Entrara comigo no bolor da velhice?
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