Rubem Fonseca A G O S T O
Rubem Fonseca A G O S T O

Rubem Fonseca


A G O S T O


1. PERSONAGENS E ENREDO


Neste romance, o autor desenvolve três tramas paralelas: policial , amorosa e histórico-política. Alguns


personagens atuam em duas ou nas três tramas.


PERSONAGENS EM EVIDÊNCIA NA TRAMA POLICIAL:


ALBERTO MATTOS, ou simplesmente MATTOS: comissário de polícia, solteiro, residente em apartamento no oitavo


andar de um prédi o na Rua Marquês de Abrantes, bairro Fl amengo, Ri o de Janeiro. Formado em Direito,

pretendia ser juiz, mas arrumou o emprego de comissário enquanto esperava completarem os cinco anos

estipulados para prestar o concurso de acesso à magistratura. Carregava no bolso sempre um dente restaurado

que se despregara da boca e sofria de uma úlcera gástrica que o atormentava.


PÁDUA: comissário de polícia que alternava plantões com Mattos.

ROSALVO: investigador de polícia, subordinado a Mattos.

RAMOS: delegado de polícia, superior de Mattos.

PAULO MACHADO GOMES AGUIAR: rico industrial assassinado, sócio fundador da Cemtex, uma das maiores


firmas de importação e exportação do país (dizia-se que ele era testa-de-ferro de grupos estrangeiros)..


CLÁUDIO AGUIAR: primo de Paulo.

LUCIANA GOMES AGUIAR: esposa de Paulo.

ALICE: ex-amante de Mattos e casada com

PEDRO LOMAGNO: rico industrial, amante de Luciana.

SALETE: ex-prostituta, amante de Mattos e de

LUIZ MAGALHÃES: rico industrial.

CHICÃO: um negro forte, executor das ordens de Lomagno para eliminar aquelas pessoas influentes que


prejudicassem seus projetos de corrupção.


VITOR FREITAS: senador, homossexual.

CLEMENTE: assessor do senador Freitas.


TRAMA POLICIAL


Início do mês de agosto de 1954. Mattos e Rosalvo, atendendo à comunicação, feita no final da manhã, do


assassinato de Paulo Gomes Aguiar, ocorrido à noite, dirigiram-se ao oitavo andar do luxuoso edifício Deauvi lle.

Mattos encontrou no box do chuveiro um anel largo de ouro, no qual estava gravada a letra F, e guardou-o no bolso.


Da empregada que telefonara para a delegacia, Mattos ficou sabendo que Luciana estava em Petrópolis há


mais tempo e que Cláudio Aguiar, acompanhado do advogado Galvão, havia chegado ao apartamento antes dos

policiais. Comunicou-lhes que precisava interrogar a viúva. Antônio Carlos, o perito que fora fazer seu trabalho,

encontrou e entregou ao comissário uma caderneta de endereços pertencente ao morto. Ao sair, Mattos deixou com

o porteiro do dia recado para o porteiro da noite, Raimundo, que o procurasse no distrito tão logo pudesse.


O depoimento prestado por Luciana ao comissário no distrito nada de esclarecedor acrescentou.

Rosalvo estava pesquisando a vida pregressa de Paulo Gomes Aguiar, de Cláudio Agui ar e também do senador


Freitas, nome incl uído na caderneta de endereços do morto. Até então, o investigador nada descobrira que pudesse

explicar o homicídio.


Pádua relatou ao colega Mattos que os senadores tinham o costume de relaxar de suas graves tarefas no


“senadinho”, um apartamento de prostituição em prédio vizinho ao Senado. Para lá os doi s policiais se dirigiram a fim

de obter declarações da “cafetina” Laura, proprietária do prostíbulo. A única novidade obtida, sem interesse para o

caso, foi a de que o Freitas era homossexual obcecado por rapazes.


Rosalvo colheu a informação de que Paulo, Cláudio e Pedro Lomagno tinham estudado no mesmo colégio, do


qual foram expulsos por terem violentado sexualmente um outro aluno, José Silva. O mesmo investigador descobriu

que Pedro Lomagno era sócio da Cemtex. Aliás, essa empresa consegui a vantagens junto ao Banco do Brasil por

intermediação de Luiz Magalhães.


O perito e o legista passaram para Mattos algumas conclusões acerca do homicídio de Paulo: o assassino era


um negro que matara por estrangulamento. O comissário interrogou o porteiro noturno do edifício Deauville e fi cou

sabendo que o apartamento dos Gomes Aguiar tinha sido visitado, na noite do crime, por um negro corpulento e mal-

encarado, que disse estar indo lá para fazer um trabalho, provavelmente de macumba, segundo o porteiro. Luci ana,

porém, o havia proibido de falar com alguém sobre essa visita.


1

 

 

Mattos desconfiou que o assassino fosse Gregório Fortunato, o importante chefe da guarda pessoal do


presidente Getúlio Vargas; ele correspondia à descrição e usava um anel pelo menos semelhante ao encontrado

pelo comissário. Alice insinuou que seu marido estava implicado na morte do empresári o por ser amante da viúva.

Mas, como ele não era negro, a hipótese foi considerada improvável.


Mattos nunca aceitou suborno dos bicheiros, mas tinha o costume de soltar os pobres coitados que eram presos


quando colhiam os palpites do jogo de bicho nas ruas. Certo dia, irritou-se com a arrogância de um desses

contraventores de pequeno porte, Ilídio. Deu-lhe um pontapé no traseiro e o manteve preso por curto tempo. Ilídio

integrava uma corrente de bicheiros importantes que subornavam os policiais. Ramos, o delegado, chamou a

atenção de Mattos por ter sido violento. Ele era um dos que recebiam suborno dos banqueiros do bicho; por isso

Ilídio entrava no distrito policial com ares de poderoso. Humilhado, ele jurou vingar-se de Mattos. Contratou um

capanga temido para matar o comissário, um tal de Turco Velho, que estava em Caxambu visitando a mãe.

Imediatamente, retornou ao Rio para efetuar esse trabalho. Os poderosos banqueiros de bicho Aniceto Moscoso e

Eusébio de Andrade convocaram seu subordinado Ilídio e usaram de um argumento convincente para que ele

desistisse de mandar matar Mattos, ato completamente prejudicial aos interesses dos contraventores: ofereceram-lhe

mais pontos do jogo de bicho, sonho dele, que ansiava crescer naquele ramo de ativi dade. Ilídio aceitou a proposta e

ficou de dar uma contraordem para Turco Velho. Este, porém, gostava de “trabalhar” sozinho, não foi encontrado,

ninguém sabia de seu paradeiro.


Mattos foi à sede da Presidência da República, o Palácio do Catete, para i nterrogar Gregório Fortunato.


Conseguiu conversar com o subchefe da guarda pessoal do presidente, o inspetor Valente. Gregóri o, o chefe, estava

ocupado, não poderia atender.


Alguém telefonou para o distrito, sem se identificar, e informou ao comissário que alguém iria lhe dar um tiro.


Mattos não deu importância a essa ameaça pois não sabia que o “anônimo” era Ilídio, preocupado porque não

conseguira cancelar a incumbência dada ao capanga.


Sem que Mattos percebesse, foi seguido por Turco Velho, que bateu à porta da casa dele, simulando querer


fazer uma denúncia. O comissário teve certeza de que era o matador contratado. Mandou-o entrar, deu-lhe voz de

prisão e o levou para o distrito. Ciente disso, o colega Pádua insistiu com Mattos, em vão, no sentido de liquidar o

preso. O comissário permitiu que o delegado soltasse Turco Velho no dia seguinte, por falta de provas. Pádua não se

conformou com a idéia de que fosse solto alguém que queria e poderia matar um policial. Por isso, de madrugada,

levou o homem para um lugar ermo e o executou com um tiro na nuca, mais convicto ainda de que agi ra certo depois

de saber que se tratava do famoso matador Turco Velho. Este aceitou morrer como conseqüência de sua falha e,

antes, pediu que Pádua avisasse à mãe dele que no cartório de Caxambu havia a escritura de uma casa em nome

dela, comprada em segredo como presente de aniversário dentro de dois dias. Pádua atendeu ao pedido e nada

disso contou a ninguém, muito menos a Mattos. Só se arrependeu depois de não ter tido a curi osidade de saber

quem fora o mandante. Tempos depois, Mattos ficou ciente de tudo, inclusive de que o mandante era Ilídio, através

de um ladrão de jóias perseguido por Pádua e pela informação de um funcionário do necrotério. Os banqueiros

Eusébio de Andrade e Aniceto Moscoso deram proteção a Ilídio. Mandaram-no internar numa clínica de repouso e,

assim, evitou-se o interrogatório policial.


Rosalvo encontrou-se com Teodoro, capanga do senador Vítor Freitas, e propôs um acordo: se o senador


arrumasse sua transferência, ele o livraria das suspeitas que constavam na polícia de sua participação em várias

negociatas. Teodoro levou essa proposta a Freitas. O senador, bêbado, desentendeu-se, após a saída do capanga,

com Clemente e confessou seu medo de que o comissário Mattos descobrisse que ele tinha sido flagrado, pelo

síndico do prédio onde morava, praticando sexo oral com um rapaz no elevador. Por enquanto, tal caso estava

abafado. Quanto a seu envolvimento na Cemtex, o senador não tinha receio. Chegou a pedir a Clemente que

acionasse Teodoro para liquidar Mattos. Mais tarde, voltou atrás, deixassem o comissário de l ado.


Numa nova entrevista com Luciana, esta deu a entender a Mattos que o negro visitante de seu apartamento era


um macumbeiro. Aliás, Lomagno concluíra que o porteiro Raimundo deveria ser morto; caso contrário, ele poderia

induzir Mattos a suspeitar que o assassino procurado não era o pai-de-santo e sim Chicão, o qual agira sob as

ordens do casal de amantes. Para executar a morte do porteiro, Lomagno recorreu novamente a ele.


A fim de cumprir sua missão, Chicão pediu emprestado o carro de sua amante Zuleika. Já passava de uma hora


da madrugada quando ele atraiu o porteiro para dentro do carro, imobilizou-o à força e matou-o quebrando-lhe o

pescoço. Pôs o corpo no porta-malas e conduziu o carro para um local afastado da cidade. Ali, protegido pela

escuridão, mutilou o cadáver, colocou os pedaços num saco e o atirou num rio, amarrando nele uns halteres bem

pesados. Teve o cuidado de levar consigo os dedos da mão decepados. No retorno, o dia já estava claro e o carro

ficou retido num congestionamento diante da Igreja da Candelária, pois estava terminando a missa de sétimo dia

pelo Major Vaz. Uma multidão gritava, ameaçava as autoridade. A polícia interveio. Chicão aproveitou-se da

confusão; ao passar por onde havia feri dos e alguns mortos, foi jogando na rua os dedos de Raimundo, guardando

intervalos. Lomagno deu-lhe a ordem de sumir da zona sul do Rio.


Atendendo a um chamado telefônico de Lomagno, Mattos procurou-o no escritório da empresa Lomagno & Cia.


e foi informado de que Alice fazia tratamento psiquiátrico por sofrer de psicose maníaco-depressiva. Mas interessou

mesmo ao comissário ficar sabendo que Paulo Aguiar tinha recorrido a Gregório Fortunato para conseguir favores do

Governo. Lomagno passou essa informação falsa quando percebeu que o comissário suspeitava de Gregório como

assassino de Gomes Aguiar. Ainda com o intuito de confundir mais a elucidação da morte, Lomagno confirmou a

história da amizade da família do morto com um macumbeiro e até se prontificou a mostrar onde ele morava. Assim

foi feito. Os dois chegaram à casa do pai-de-santo e o comissário o interrogou. Embora não convencido de que

aquele pudesse ser o assassino – o anel não caberia no dedo dele –, Mattos o levou para o distrito, pretendendo


2

 

 

fazer uma acareação dele com o porteiro Raimundo. No edi fício Deauville, colheu a informação de que Raimundo

tinha sumido. Então, liberou o pai-de santo, já certo de sua inocência.


Outra diligência de Mattos foi conversar com José Silva, molestado sexualmente no colégio por Paulo Gomes


Aguiar e outros. Encontrou-o em casa. Era dentista, casado, vivia com a mulher e a filha. O comissário logo notou

que ele não tinha nenhuma implicação no assassinato.


Procurando perseguir a pista do homicídio que levava a Gregório Fortunato, Mattos convidou Pádua a irem


entrevistar o poderoso “Anjo Negro” que estava preso na base aérea do Galeão. Não conseguiu seu intento. Pediu,

então, ao oficial que verificasse se Gregório usava um anel. O militar trouxe o anel que o prisioneiro usava e era

muito parecido com o que foi encontrado no apartamento do morto.


Continuando suas pesquisas, Mattos voltou ao “senadinho” e fez perguntas à cafetina Laura, de quem obteve a


informação de que Lomagno era muito amigo de um negro forte, treinador de boxe.


Com a ajuda da Seção de Vigilância, tomou ciência de que Chicão dava aulas de boxe num clube. Lá chegando,


em lugar do negro encontrou o velho Kid Terremoto, segundo o qual Lomagno abrira uma academi a para Chicão e

este usava, sim, um anel só tirado do dedo quando calçava luvas ou tomava banho. Mattos foi atendido pelo vigia do

galpão de propriedade de Francisco Albergaria, que há muito não aparecia por lá. O comissário deixou um bilhete

pedindo que Chicão se comunicasse com ele para uma informação, “coisa sem importância”.


Lomagno estava envolvido na negociata da Cemtex. Sua preocupação quase exclusiva, porém, era um plano


para cuja realização precisava da ajuda de Chicão, a quem prometeu alta recompensa: matar o comissário Mattos.


No dia 24 de agosto, pela manhã, Mattos soube do suicídio de Getúlio Vargas e foi logo para o Palácio do


Catete, onde a confusão era grande. Valendo-se de sua condição de policial, o comissário atingiu o objetivo de sua

ida ao palácio, pois viu Vargas morto. Abalado, retornou ao distri to, desarmou os policiais de serviço, trancou-os na

sala, pegou as chaves do carcereiro e soltou todos os presos. Pádua, avisado disso por telefonema do próprio

Mattos, dirigiu-se ao distrito e encontrou o colega. Os dois discutiram. Pádua censurou o que o outro fizera, mas este,

sem dar importância às palavras iradas a ele dirigidas, saiu sozinho. De madrugada, voltou ao Palácio do Catete,

porque desejou ver de novo Vargas morto. Depois, esperou a saída do cortejo fúnebre e entrou no meio da multidão

que seguiu até o aeroporto, onde o caixão do presidente foi embarcado. Mattos assi sti u a vários confrontos que se

sucederam nas ruas entre grupos de pessoas revoltadas e os soldados.


Já em seu apartamento, Mattos sentiu que sua úlcera estava sangrando. Telefonou para Salete que logo o foi


socorrer. De repente, Chicão entrou pela porta da frente. Levado por Salete, o negro foi até o quarto e conversou

com o comissário, o qual lhe entregou o anel e lhe deu voz de prisão. Sem se abalar, Chicão aumentou o volume da

vitrola ligada e matou o comissário com um tiro de revólver. Após, l amentando ter que matar uma moça bonita –


Salete lhe agradeceu por el e tê-l a achado a mulher mais linda que vira na vida –, colocou o revólver sobre o seio

esquerdo dela, apertou o gatilho. Diminuiu o som da vitrola e saiu sem olhar os mortos.


Poucos minutos depois, Genésio, o pistolei ro irmão de Teodoro a quem Clemente contratara para matar o


comissário, chegou ao apartamento. Constatou as mortes. No hotel, onde o irmão dele e o mandante Cl emente o

esperavam, deu a notícia de missão cumpri da – “Tive também que matar a moça que estava com ele. Mas não vou

cobrar por isso” –, recebeu os cem contos combinados e foi-se embora.


O alto comando do jogo de bicho mandou um emissário à clíni ca na qual estava internado Ilídio para saber se


ele havia participado da morte de Mattos. Mediante a negativa do bicheiro, um novo guarda-costas o escoltou na

saída. No meio da estrada, o carro do bichei ro foi fechado por um Chevrolet em que estava Pádua e outro policial.

Este atirou nos dois acompanhantes de Ilídio, matando-os. Depois, o bicheiro foi levado para um local ermo e, sob

tortura, forçado a declinar o nome do negro que assassinou Mattos e Salete. Não acreditaram que Ilídio esti vesse

falando a verdade quando declarou não conhecer o matador. Por medo de morrer, ele denunciou Feijoada Completa,

apelido do único negro cuja lembrança lhe veio à cabeça. Mesmo assi m, Pádua o executou com um tiro na nuca,

sem lhe tirar as algemas. “Deixa as algemas. Para os amigos desse filho da puta saberem que foi o pessoal da casa

que fez este trabalho. Para aprenderem que não podem matar um tira assim sem mais nem menos”.


TRAMA AMOROSA


Mattos tinha sido amante de Alice, até que esta desistiu de esperá-lo tornar-se juiz. Largou-o e casou-se com


Pedro Lomagno. Entretanto, o comissário nunca deixou de gostar de Alice. Afastado dela, mantinha relações

amorosas freqüentes com Salete, a qual, embora mantida financeiramente pelo amante Luiz Magal hães, alimentava

a esperança de casar-se com Mattos.


ALICE E MATTOS


Fazia três anos que Mattos não via Alice. Às seis horas da manhã de certo dia, o telefone do apartamento do


comissário tocou. Era Alice, que queria encontrar-se com ele. Marcaram, para aquela tarde no Café Cavé, um

encontro, no qual Alice recordou hábitos e fatos envolvendo os dois no período em que viveram juntos, o gosto dele

por óperas, entre outros. Acabou ela não dizendo o que desejava dizer. Combinaram nova conversa para dois dias

depois.


Sal ete estava com Mattos no apartamento dele no momento em que Alice tocou a campainha. Assim que viu a


outra lá dentro, ela se despediu sem entrar e ficou de telefonar mais tarde.


3

 

 

Após alguns dias, Alice voltou ao apartamento de Mattos, que estava sozinho desta vez. Sem muitos rodeios,


ela desabafou: “Meu marido é amante de Luciana Gomes Aguiar”. Nervosa, não deu continuidade ao assunto. Os

dois discutiram e ela se retirou.


Em conversa com o marido, Alice lhe disse ter informado que Luciana era amante dele ao comissário Mattos.


Lomagno a chamou de tola e ouviu da mulher que Mattos estava à procura de um negro, suspeito de ter matado

Paulo Aguiar.


Ali ce, por sofrer de psicose maníaco-depressiva, fazia tratamento com um psiquiatra. Mattos o procurou


querendo colher dados que o levassem a esclarecer a morte de Paulo Aguiar. Dr. Arnoldo Coelho, o médico, expli cou

que Alice, na fase maníaca, precisava de movimento, tornava-se irônica, escrevia compulsivamente páginas e

páginas de seu diário, presenteava as pessoas; na fase depressiva, ficava totalmente apática e já chegara a ser

internada. À pergunta de Mattos se ela costumava ter alucinações, o psiquiatra disse que não; às vezes, apenas

passava por ilusões, como mania de perseguição, e só.


Novamente Alice apareceu no apartamento de Mattos e pediu para morar lá. Os dois dormiram juntos naquela


noite. Na manhã seguinte, ela saiu com o comissário, que lhe deu as chaves da portaria e do apartamento. Ela havia

deixado uma carta para o marido, comunicando-lhe que não queria mais viver com ele, que não a procurasse, pois

estava bem de saúde.


Sal ete resolveu levar sua mãe para Mattos conhecer. Encontrou Alice no apartamento. Ao chegar, o comissário


surpreendeu-se com as três juntas. Sugeriu que mãe e filha se retirassem. Salete saiu com vontade de chorar. Al ice

comprara vários objetos para o apartamento, inclusive cama nova, sob os protestos de Mattos, que nada adiantaram.

Estava tudo pago.


O comissário se preocupava com a presença de Alice no seu apartamento porque tinha sido procurado lá por


Turco Velho, incumbido de matá-l o. Por sorte, ela não estava no momento. Entretanto, mesmo ciente do perigo, Alice

continuou morando com Mattos e até informou isso ao marido, o qual insistiu em que ela voltasse para casa. Mas

ouviu-a dizer que amava o comissário e só precisava dele.


Em uma de suas conversas habituais, Alice perguntou a Mattos se estava feliz e pediu que prometesse não ver


mais Salete. O comissário disse que precisava sair depressa, desconversou e não prometeu. Alice afirmou ser até


bom que ela ficasse sozinha naquele momento porque tinha muita coisa para escrever no diário. No distrito, Mattos

recebeu um telefonema do porteiro do prédio cientificando-o de que tinha havido um início de incêndio no andar em

que morava. Lá chegando o mais depressa possível, soube que Alice quei mara o diário e deixou o fogo se alastrar.

Encontrou-a sem ferimentos. O comissário ligou para o psiquiatra, que mandou levá-la para a Casa de Saúde Dr.

Eiras. O médico quis aplicar eletrochoque; Mattos pediu que ele não usasse esse procedimento em Alice. Deixou-a

internada e disse que passaria lá no dia seguinte, assim que saísse do plantão. Logo que pôde foi visitá-la. Achou-a

dormindo. O Dr. Arnoldo já havia passado cedo e a medicara. De casa, ligou para o psiquiatra, segundo o qual Al ice

passava bem e teria alta em dois dias. Mas não queria voltar para junto de Lomagno. Mattos pediu ao Dr. Arnoldo

que lhe desse o recado de voltar para o apartamento del e. Pouco depois desse telefonema, o comissário foi

assassinado.


SALETE E MATTOS


Sal ete só estudou até a quarta série do ensino fundamental. Seu amante, Luiz Magalhães, ofereceu a ela


emprego no Senado, pois ele era bem-relacionado lá. Por medo, Salete recusou. Mas tinha vontade de estudar mais

para conseguir exercer alguma profissão. Ela nasceu e foi criada em grande pobreza, sem conhecer o pai, numa

favela perto de São Cristóvão, no Rio. Era a primeira dos três filhos. Ainda criança, tomava conta dos irmãozinhos

para a mãe, uma mulata quase preta, feia e ignorante, ir trabalhar. Aos treze anos, Salete fugiu de casa e tornou-se

babá numa casa de família em Botafogo. Lá ficou até encontrar D.Floripes, que a convidou para morar com ela e

ganhar muito mais.


Antes, pois, de ser “descoberta” por Magalhães, Salete se sustentava financeiramente como uma prostituta


agenciada por D. Floripes, relacionando-se com homens de classe média. Gastava o que ganhava comprando

roupas caras. Graças a isso, foi notada por um homem rico.


Eram freqüentes as idas de Salete ao apartamento de Mattos. Este referia-se a Luiz Magalhães como o coronel


dela. “É uma pessoa que me ajuda”, retrucava. “Se você quiser eu largo ele e venho morar aqui”. Mattos nunca quis.

As discussões dos dois não tinham efeito duradouro.


Sal ete pedia sempre os “trabalhos” de mãe Ingrácia para conquistar Mattos (até cueca dele levou para a


macumbeira fazer “despacho”).


Na primeira vez que Salete viu a loura Alice – justamente quando esta tocou a campainha no apartamento de


Mattos e se despediu sem entrar –, não pôde deixar de se comparar fisicamente com ela. Embora soubesse que seu

corpo era perfeito, achava-se horrorosa de rosto.


Mãe Ingrácia, ao lhe contar Salete sobre Alice, aconselhou-a a conseguir casquinhas de alguma ferida, mais


eficientes do que a cueca para “trabalhos” de atrair paixão de homem. Quando o comissário bateu com a cabeça na

parede e formou um “galo”, Salete ficou esperançosa de que virasse ferida com casquinha. Na primeira oportunidade

que apareceu, ela foi mexer no fogão do apartamento de Mattos, pediu ajuda para fazer macarronada e acabou

queimando, de propósito, a mão dele, na expectativa de que viesse a se formar uma ferida com casquinha. Mattos

não esbravejou. Prometeu dar-lhe as casquinhas da ferida, mas pediu que não voltasse a ver a macumbeira, pois ele

já gostava dela.


4

 

 

Sal ete não ti nha tido nunca mais notícias da família e supunha que a mãe estivesse morta. Grande foi a sua


surpresa no dia em que, do ônibus onde estava, viu a mãe saindo de uma loja. Pensou: “... a desgraçada não tinha

morrido. Meu Deus, ficou mai s negra e mais feia!” Sentiu-se infeliz ante a possibilidade de Luiz Magalhães e,

sobretudo, Mattos virem a conhecê-la. Um dia depois, contudo, passou a pensar na mãe com pena. Tomou uma

decisão. Pegou um vesti do novo de seda francesa, embrulhou-o e foi tentar localizar a mãe para presenteá-la. Subiu

o morro olhada com espanto pel os moradores, à procura de D. Sebastiana. À porta do barraco de madeira, coberto

com folhas de zinco, encontrou-a. Sob forte comoção, ficou sabendo que um dos irmãos estava preso e o outro

fugira de casa e não voltou mais. Salete pediu perdão à mãe e di sse que a levaria para morar com ela. Já no seu

apartamento, Sassá, como a mãe a chamava, a fez tomar banho e depois l evou- a uma loja e à costureira, a fim de

providenciar-lhe roupas novas.


A queimadura da mão de Mattos criou uma casca que ele guardou para Salete, a qual não sabia disso porque


sumira do apartamento do comissário desde que Alice passara a morar lá.


Sal ete andava muito desgostosa, mais magra. Parara de se comunicar com Mattos e não atendia aos


telefonemas de Magalhães. Certa feita, porém, com muita insistência deste, resolveu fazer-lhe um favor. Magalhães

a levou à Sul América – Seguros e Capitali zação, onde alugou um cofre em nome dela. Ele precisava ir para o

Uruguai às pressas e passaria lá um tempo indeterminado “até que as coisas melhorassem”. Como tinha muitos

inimigos, explicou, alguns obj etos de valor ficariam guardados no cofre em nome dela. Assim que voltasse, os

pegaria de novo. Deixou com Salete a chave, recomendou que não a perdesse, informou-a de que havia depositado

bastante dinheiro na conta dela e afastou-se rapidamente. Salete desolou-se porque ele nem se importou quando lhe

disse que gostava de outro homem. Magalhães sempre falava que, se isso acontecesse, a mataria. Ele brincou

nervosamente: “Na volta eu te mato”.


Logo depois de ligar para o Dr. Arnoldo, que tratava de Alice hospi talizada, Mattos telefonou para Salete. Disse-


lhe que a outra estava internada, que iria precisar dele por um tempo, mas que a verdadeira namorada dele era ela,

Salete. Pediu que fosse vê-lo, tinha saudade. Na verdade, ele estava tendo uma crise fortíssima por causa da úlcera.

Salete chegou logo, encontrou-o deitado, pálido, suando mui to, precisando ser levado para um hospital. Ao socorrê-

lo, Salete recebeu um embrulhinho com casquinhas de ferida. De repente, a porta da frente foi aberta. Chicão entrou

e matou os dois.


PERSONAGENS EM EVIDÊNCIA NA TRAMA HISTÓRICO-POLÍTICA


GETÚLIO VARGAS – presidente da República do Brasil, ditador de 1937 e 1945 e el eito pelo voto popular em 1950.

GREGÓRIO FORTUNATO – um negro forte, amigo e chefe da guarda pessoal de Vargas, conhecido como “Anjo


Negro”, mandante próximo do atentado à vida de Lacerda.


CARLOS LACERDA – jornalista, dotado de grande poder verbal, apeli dado de “Corvo”; eleito deputado federal,


através de artigos no jornal “Tribuna da Imprensa” e de discursos na Câmara, liderou o partido da UDN e aliou-

se aos militares na conspiração golpista contra o governo de Vargas.


CLIMÉRIO – integrante da guarda pessoal de Vargas, encarregado por seu chefe e compadre Gregório de contratar


um matador para dar fim à vida de Lacerda.


ALCINO – um carpinteiro desempregado, amigo de Climério, contratado por este para matar Lacerda.

NÉLSON - motorista cujo táxi foi utilizado por Climério e Alcino no atentado contra Lacerda.

MAJOR VAZ – oficial da Aeronáutica, morto no atentado contra Lacerda.

CAFÉ FILHO – vice-presidente da República no governo democrático de Vargas.

BRIGADEIRO EDUARDO GOMES – líder das forças militares contrárias a Vargas.

MARECHAL MASCARENHAS DE MORAIS – chefe do Estado Maior das Forças Armadas no governo de Getúlio, ex-


comandante das tropas militares brasileiras que atuaram na Itália durante a 2ª Guerra Mundial.


GENERAL ZENÓBIO DA COSTA – Ministro da Guerra no governo de Vargas.

ALZIRA VARGAS – filha de Getúlio, casada com

ERNÂNI DO AMARAL PEIXOTO – político atuante e de confiança do sogro.

LUTERO VARGAS – filho de Getúlio, deputado federal.


TRAMA HISTÓRICO-P OLÍTICA


Gregório Fortunato estava sozinho em seu quarto rememorando o mau transcorrer daquele ano de 1954 que já


ultrapassara o primeiro semestre: manifestos dos militares contra o Governo; falta de confiança de Getúlio no apoio

das Forças Armadas; tentativa de “impeachment” do presidente por parte dos políticos traidores; a liderança do

oposicionista Carlos Lacerda com claros objetivos golpistas; vários políticos e empresários getulistas cobrando dele,

Gregório, a morte de Lacerda. Já lhe tinham prometido uma boa soma de dólares como recompensa. De fato estava

em poder de Luís Magalhães a quantia de quinhentos mi l cruzeiros, enviada pelo industrial Matsubara – beneficiado

pelo Governo num grande empréstimo junto ao Banco do Brasil – importância destinada a ajudar na campanha dum

deputado, que era secretário particular do presidente Getúli o, mas que Gregório estava guardando para pagar ao

futuro matador de Lacerda.


Gregório saiu do quarto e foi encontrar-se com Climério. Cobrou dele o que já lhe havia pedido: a indicação de


um homem de confiança para matar Carlos Lacerda. Climério tranqüilizou o chefe dizendo que logo arranjaria o

matador certo. Estava pensando em Alcino, que não era pessoa qualificada para isso, mas não podia contar com

outro. Talvez, bem instruído, fizesse o serviço direito.


5

 

 

Alcino assumiu com Climério a obrigação de matar o jornalista Lacerda, única forma de ele conseguir dinheiro


para ter casa própria.


Estabelecido o plano, Climério e Alcino tomaram o táxi de um tal de Nélson. Na noite do dia 5 de agosto – o ano


era 1954 – estacionaram o carro em rua próxima ao Colégio São José, de onde sairia Lacerda. Com um revólver 45,

Smith & Wesson, furtado do Exército, Al cino se pôs próximo à entrada do colégio. Cl imério ficou na porta. Depois de

Alcino atirar, aproveitariam a confusão para fugir em direção ao táxi.


Lacerda não apareceu entre as pessoas que saíram do colégio. Então, os dois foram aguardar o jornalista perto


do prédio onde ele morava, na Rua Tonelero, em Copacabana. Depois de quinze minutos de espera, já iam desi sti r,

quando um carro parou e del e saltaram Lacerda, um filho e o Major Vaz. Alcino atirou no jornalista, que, ferido,

correu para o interior da garagem. Sem que Alcino desse conta, o major se aproximou e agarrou a arma. O matador

atirou, caiu o major. Alcino fugiu para onde estava o táxi; um polici al correu atrás, atirando. Alcino apontou para ele e

disparou, deixando-o caído. O táxi já estava de motor ligado e saiu em disparada. Climério tinha sumido, mas dei xara

a instrução de que Alcino embrulhasse o revólver e o jogasse no mar. No momento em que ele pôs a mão para fora

do táxi, na Avenida Beira-Mar, a fim de lançar nas ondas a arma envolvida numa flanela, o carro fez uma manobra

brusca e o embrulho caiu no asfalto. O táxi parou mais à frente e foi embora assim que Alcino desceu. Andou de um

lado para outro sem saber o que fazer, já que não localizou na escuridão o revólver caído. Fora da visão de Alcino,

um mendigo apanhador de papéis recolheu do meio da rua o embrulho e desapareceu. O matador acabou desistindo

de encontrar a arma. Tomou um ônibus e foi até à casa de Climério, que logo em seguida chegou no táxi de Nélson.

Com a promessa de que receberia o dinheiro prometido daí a dois dias, Alcino retirou-se.


O Major Vaz morreu em decorrência do tiro, mas Lacerda ficou ferido apenas no pé e responsabilizou o


presidente da República pelo atentado, que provocou muita confusão no meio político. O filho de Getúlio, deputado

Lutero Vargas, foi apontado como mandante do crime.


Dois dias após o atentado, Climério retornou à casa do pistoleiro Al cino. O motorista Nélson havia se


apresentado à polícia e fez declarações incriminando os doi s. Climério deu a Alcino dez notas de mil e mandou que

ele sumisse.


As investigações sobre o atentado foram tomando vulto. Enquanto isso, em todos os grupos de pessoas no país


o assunto político estava em pauta. Havia os que apostavam na decadência de Getúlio, os que tinham medo de o

vice-presidente Café Filho assumir, os que viam o Brasil na mão dos militares, sobretudo da Aeronáutica... O senador

Freitas, por exemplo, percebendo que a oposição ganhava mais força, declarou em discurso no Senado: “a nação

não pode esquecer, não pode perdoar essa ignomínia”, referindo-se ao atentado.


Mais de quatrocentos oficiais da Aeronáutica, do Exército e da Marinha reuniram-se para manter o cli ma de


indignação pela morte do Major Vaz e exigir o prosseguimento do inquérito até o fim. Outros encontros de militares

em maior quantidade se realizaram sob a liderança do brigadeiro Eduardo Gomes.


Devido às informações prestadas pelo motorista Nélson, Climério estava sendo caçado pela polícia, que


trabalhava no processo com apoio de oficiais militares. Já tinham até interrogado o mendigo Russo que encontrara

na rua a arma do crime e a apreenderam.


Climéri o recebeu dinheiro enviado por Gregório Fortunato e fugiu para o sítio de um compadre, na Serra do


Tinguá. Lá, se escondeu num barraco no meio de um bananal.


O deputado Lutero Vargas foi visitar seu pai para confirmar-lhe sua inocência no atentado. Achou Getúlio muito


prostrado, sem vontade de lutar contra o Corvo difamador. Em contato com seus assessores, incluindo ministros e

generais do Alto Comando, Vargas notava indecisão no apoio a ele, exceto o governador Amaral Peixoto, seu genro,

e o ministro da Justiça Tancredo Neves, que estavam francamente a seu lado.


Além da i mprensa, os opositores do governo faziam uma bem orquestrada campanha de desmoralização do


presidente, da qual participavam a cúpula da Igreja, setores das Forças Armadas, do empresariado, partidos políticos

de oposição. A voz mais eloqüente desse grupo era Lacerda, um mestre da intriga, segundo o senador Freitas. Suas

falas no rádio e seus artigos no jornal haviam levado o Governo a colocar de prontidão nos quartéis trinta mil

soldados, somente no Rio de Janeiro. Os diretores dos grandes jornais – incluindo Roberto Marinho de “O Globo” –


conseguiram designar um representante credenciado no inquérito do atentado, certos de que formavam o Quarto

Poder.


Vargas marcou uma reunião secreta com a família e alguns amigos. Propôs sua renúncia como forma de evitar


uma guerra civil. Mas o consenso dos presentes foi que ele não cedesse às pressões dos golpistas.


Alguns generai s quiseram forçar o Mal. Mascarenhas de Morais a concordar em entregar o Governo ao Gen.


Zenóbio da Costa. Em nome do marechal fal ou o Gen. Castelo Branco que, se o Presidente renunciasse, deveria

assumir o Governo seu substituto legal, o vice-presidente.


Depois da missa de sétimo dia pela morte do Maj or Vaz formou-se um tumulto da multidão aglomerada às


portas da Igreja da Candelária, no centro do Rio. A polícia interveio. Houve feridos e mortos.


Após a inauguração da Usina Siderúrgica Mannesmann, em Belo Horizonte, durante o almoço no Palácio da


Liberdade, ao lado do Governador Juscelino Kubi tschek, Vargas afirmou que não entregaria o cargo e o exerceria até


o fim do seu mandato.


Os deputados da UDN, porém, acusavam o Governo exigiam a renúncia de Getúlio. De todo lado e a todo


momento eram veiculadas no rádio e na imprensa notícias alarmantes, que incriminavam o Governo de Vargas pelo

atentado.


O Senador Vítor Freitas tentava convencer, sem conseguir, os líderes de seu partido, o PSD, a exigirem de


Getúlio a renúncia ou a deporem-no. Os dezesseis deputados e quatro senadores continuavam indecisos porque,

apesar de reconhecerem o “mar de lama” denunciado por Lacerda e a iminência da queda do Presidente, o partido


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deles apoiava o Governo, no lado oposto ao da UDN. As pressões a favor de um golpe aumentavam e choviam

denúncias de corrupção.


Preso no Galeão, Gregório Fortunato foi interrogado durante oito horas. Negou saber do atentado e disse ter


sido surpreendido com a notícia do envolvimento de Climério no caso. Os mi litares e policiais que chefiavam as

investigações arrancaram dele um depoimento escrito no qual apontava Lutero Vargas como mandante. Foi

promovida uma acareação do filho de Getúlio com o “Anjo Negro”, para desmoralizar o integrante da própria família

do Presidente. Gregório, porém, nada disse, permanceceu totalmente indiferente e alheio.


Enquanto isso, Climério, cansado do isolamento, resolveu dar um passeio com o compadre até a uma venda no


vilarejo. Lá encontraram uma mulher que morava no Rio e conversaram. Essa mulher, assim que voltou para casa,

ligou para um tenente da Aeronáutica, seu ami go, para revelar o esconderijo de Cl imério. Logo depois chegaram à


residência dela vários oficiais. Certificaram-se da veraci dade da informação e colheram o endereço do foragi do na

Baixada Fluminense.


Armou-se uma verdadeira operação de guerra para capturar Climério. Quando alguns soldados e cães


farejadores cercaram a casa do compadre de Climério, este já havia fugido, embrenhando-se na mata. Veio a noite e

ele descansou. Na manhã seguinte, tropas do Exército, da Aeronáutica e da Marinha, com apoio de aviões,

helicópteros e viaturas militares fecharam o cerco sobre o fugitivo. Às oito horas, localizaram-no. Às onze, ele, preso,

desembarcava de um helicóptero na base militar do Galeão. Sua mulher, Elvi ra, também fora presa naquela manhã.


Homens do Governo, para resistir aos diários ataques a Vargas por parte da UDN e seus aliados, estavam


articulando o apoio do ex-presidente Dutra e do Governador Juscelino a Getúlio. Mas os jornai s faziam o jogo da

oposição.


Apesar de tudo, o Governo procurava dar sinais de vida. Vargas chegou a entrar em entendimento com Henri


Kaiser, um dos reis da indústria automobilística norte-americana, para instalar no Brasil uma fábrica com capacidade

de produzir cinqüenta mil carros por ano. Os negociadores saíram do encontro com a firme convi cção de que Vargas

estava doente, tamanho era seu abatimento.


Os envolvidos no atentado da Rua Tonelero foram apresentados à imprensa: Gregório Fortunato, que assumiu


ser o mandante do crime; João Valente, ex-subchefe da guarda pessoal da Presidência, que entregou o dinheiro a

Climério para efetuar a fuga; Alcino, que foi preso quando buscou mulher e filhos em sua casa; o taxista Nélson

Raimundo de Sousa; Climério, que pareceu muito assustado. Em seguida, exibiu-se o material de propaganda do

PTB, partido do Governo, encontrado com eles.


Em reunião no Clube Militar, exigiu-se a renúncia do Presidente, mas alguns oficiais ponderaram que primeiro


deveria ser apurado o crime. Nos meios políticos também se faziam, no país inteiro, pressões para a renúncia de

Vargas. Até o Tribunal de Contas da União manifestou seu repúdio ao atentado da Rua Tonelero. O Consultor Geral

da República deu o parecer de ter havido arbi trariedade e abuso no vultoso empréstimo do Banco do Brasil a

empresas sem idoneidade – entenda-se que apoiavam o Governo Federal.


Alzira Vargas venerava o pai. Ti nha na memória a sua trajetória política desde os primeiros movimentos, em


1923, quando ele parti u para lutar numa interminável revolução. Lembrava-se dele em 1930 chefiando a outra

revolução que o levou ao Governo Federal; em 1932, abafando a insurreição de S. Paulo; em 1935, comandando a

resistência a militares rebeldes, unidos aos comunistas; em 1945, derrotado e exilado no próprio país. Alzira

imaginou que a História redimira seu pai, retornando-o pelo voto à Presidência do país. Agora, em 1954, Getúlio era

um velho derrotado.


Em longa reunião no Clube da Aeronáutica, os brigadeiros decidiram unanimemente que só a renúncia de


Vargas seria capaz de restaurar a tranqüilidade no país. Quando esse fato foi levado ao Presidente, ele rejeitou a

hipótese da renúncia. As movimentações dos militares caminhavam no sentido de guerra civil. Gen. Zenóbio da

Costa e o Mal. Mascarenhas de Morais mantinham lealdade a Vargas; o Brigadeiro Eduardo Gomes liderava os

opositores, que pressionavam cada vez mais. A residência do vice-presidente Café Filho permanecia repleta de

amigos e correligionários políticos.


Às onze horas da noite de 23 de agosto, os dois altos militares da confiança de Getúlio estavam receosos: mais


de quarenta generais do Exército haviam subscrito o mani festo dos bri gadeiros. Já passava de meia-noite quando

foram ao Palácio do Catete anunciar a Vargas que ele tinha perdido o apoio militar. O Presidente concordou com a

idéia de convocar uma reunião de todo o ministério na manhã seguinte. Nesta, Vargas ouviu a opinião de todos os

ministros, de sua filha Alzira e de alguns outros presentes indevidamente. As alternativas eram resistênci a armada ou

renúncia. Vargas estava visivelmente desgastado. Finalizando a reunião, ele fez cessar a confusão de vozes que se

cruzavam e definiu: “Se os ministros mil itares me garantem que as instituições serão mantidas, eu me li cenci arei .”


Tancredo Neves, ficou encarregado de redigir uma nota à nação. Café Filho chegou a receber os cumpri mentos

daqueles que estavam em sua casa, pois a notícia chegou rapidamente. Mas às cinco e vinte da manhã, quando o

Chefe de Pol íci a anunciou pelo rádio que se tratava apenas de licença e não de renúncia, a expectativa tornou-se

tensa.


Em seu quarto, Getúlio preparou-se para descansar. Recebeu a visita do irmão Benjamim, chorou diante dele


que, sensibilizado e surpreso por nunca ter visto o irmão assim, confortou-o: “Tu já saíste de situações piores.”


Quando o camareiro Barbosa entrou no quarto para lhe fazer a barba, Vargas estava de pé, vestido com um pijama

de listas e disse que não queria se barbear. Novamente sozinho, o Presidente apanhou um revólver, deitou-se,

encostou o cano da arma no lado esquerdo do peito e apertou o gatilho.


Imedi atamente correu a notícia do suicídio de Vargas. Grande foi a confusão no Palácio do Catete. Os


jornalistas receberam uma nota oficial da morte do Presidente. Foram entregues também dois documentos: o texto


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da chamada carta-testamento de Vargas e de um bilhete que diziam ter sido manuscrito pelo próprio Presidente

(“deixo à sanha dos meus inimigos o legado de minha morte...”).


O corpo de Vargas ficou exposto na sala do Chefe do Gabinete Militar. Uma multidão formou filas para ver o


Presidente morto, situação que durou até às oito e meia do dia 25. Logo em seguida, colocado numa carreta, o

caixão foi conduzido até o Aeroporto Santos Dumont, seguido por milhares de pessoas. Como houve gritos de

protestos e ameaças de tumulto, soldados da Aeronáutica dispararam contra os manifestantes; populares reagiram e

várias pessoas acabaram ficando feridas. Acompanhado pela viúva Darcy Vargas e pelos filhos Alzira e Lutero, o

caixão foi posto num avião que alçou vôo para o Rio Grande do Sul. Pessoas que retornavam do aeroporto foram

formando grupos de protesto diante de vários prédios: Ministério da Aeronáutica, Embaixada dos Estados Unidos,

edifício da Esso... Pelotões de soldados investiram contra os revoltosos e muitos foram os feri dos. Uma multidão

exaltada encaminhou-se para o escritório do jornal “O Globo” para incendiá-lo. As labaredas já começavam a

queimar o edifício quando os bombeiros acudiram.


Sufocados os focos de rebelião contra os militares e civis que levaram Vargas ao suicídi o, a vi da brasileira


voltou ao normal.


2. DIGRESSÕES


O CUMPRIMENTO DA LEI


Numa de suas intervenções, Mattos discutiu com o delegado Ramos. O comissário estava presidindo um auto


de prisão em flagrante de um marido por haver cometido crime de lesões corporais em sua mulher. O delegado

discordou: o homem só tinha dado uns sopapos, a mulher não apresentava marca de ferimentos, ela mesma ficaria

contra a polícia e favorável ao marido em juízo... em suma, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Apesar disso, sob os protestos do advogado que defendia o agressor, Mattos prosseguiu, o fragrante foi lavrado,

assinado e a mulher enviada a exame de corpo de delito. O marido pagou uma pequena fiança como mandava a lei

e foi liberado. Mattos encerrou o episódio mastigando um comprimido de Pepsamar para acalmar a úlcera gástrica e

se perguntando: ele estava tornando o mundo melhor cumprindo a lei?


AS MOTIVAÇÕES DE UM ASSASSINATO


Quando o investigador Rosalvo colhia informações para verificar a possível implicação do senador Freitas no


assassinato de Paulo Gomes Aguiar, sugeriu a Mattos que pesquisassem a vida sexual do suspeito. O comissário

rejeitou a idéia, alegando que tal tipo de notícias não interessava. Acrescentou que Rosalvo não tinha a menor noção

de ética. Apesar do medo que tinha de Mattos – um esquisito e maluco, como o julgava – o experiente policial

Rosalvo resolveu dar uma lição no inexperiente comissário. Segundo ele, só se mata por sexo, por poder ou pelos

dois motivos juntos. “Assim é o mundo”, concluiu Rosalvo.


O MECÂNICO COSME


Esteve a cargo do comissário Mattos fazer diligências para escl arecer o assassinato de um cliente do mecânico


Cosme, a quem este matara durante uma briga com um golpe de chave de cruz na cabeça. A oficina era de Cosme,

jovem de 22 anos, e do pai, um português que, na ocasião, estava fora, em Nova Iguaçu. O inquérito pareceu

terminado porque Cosme confessou o crime. Mas Mattos, mesmo assim, quis ouvir o velho, por estranhar sua

ausência.


Informado da intimação dirigida ao pai a fim de comparecer ao distrito para interrogatório, o rapaz implorou ao


comissário que não o fizesse, pois o velho era doente e tudo já estava resolvido. Para Mattos, o criminoso era o pai,

a quem o filho estava protegendo.


O sr. Adelino – tal era o nome do pai de Cosme – foi conversar com Mattos. Afirmou que estava na oficina


quando o filho cometeu o homicídio. Mattos insistiu na idéia de que Cosme se declarara culpado para proteger um

velho doente, o verdadeiro assassino. O sr. Adelino acabou reconhecendo que perdera a cabeça ao ver o filho ser

espancado pelo brutamontes e o matara. A decisão de fazer Cosme assumir o crime viera da família reunida,

receosa de ver na prisão um homem idoso que sofria do coração. Lavrada a confissão, Cosme foi solto sob seus

protestos: “Fui eu, fui eu! O papai não sabe o que está dizendo!” O sr. Adelino esperaria o julgamento em li berdade,

porquanto não tinha havido fragrante. Mattos ficou visivelmente abalado com toda essa situação e disse aos dois que

um bom advogado conseguiria a absolvição do velho.


Passado certo tempo, os policiais do distrito receberam a notícia de que o Sr. Adelino morrera de um enfarto


fulminante. Dias depois, Cosme procurou o comissário para ser fiel à verdade. Esclareceu que a confissão de culpa

do pai acontecera porque Mattos o forçara a fazê-la, mas que o criminoso era ele, Cosme. A família se calara por

acabar se convencendo de que seria melhor o crime ser atri buído ao pai porque ficaria mais fácil absolvê-lo. “ O

senhor matou o meu pai. Eu matei o meu pai. Minha mulher, minha mãe mataram o meu pai. Ele era um português

velho que não sabia fingir ser o que não era...” E Cosme pedia para ser preso. Mattos o expulsou do distrito com

brutalidade, arrastando-o pelo braço: “Ouça, sua besta. Eu não posso e não quero prender você por esse crime. Não

posso aliviar sua consciência, nem a da sua mulher, nem a da sua mãe. Não seja estúpido. Não há nada mais a

fazer. Saia daqui e não volte, não quero ver sua cara nunca mais, viva com essa lembrança horrível pelo resto da

sua vida, como eu também terei de viver com ela.”


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O VELHO EMÍLIO


Quando estudante, Mattos fazia parte da claque do Teatro Municipal para assistir a operas de graça e ainda


ganhar algum dinheiro. O velho Emílio era o chefe da claque.


Após muito tempo sem vê-lo, o comissário recebeu um telefonema dele pedindo que marcassem um encontro.


Na hora combinada, lá estava Emílio, ao lado da estátua de Chopin, com aparência de enfermo e empobrecido. Os

dois dirigiram-se para um bar, onde tomaram chope. O vel ho recordou o passado, começou a cantar trechos de


ópera. Mattos percebeu que ele queria dinheiro e deu-lhe um cheque de duzentos e oitenta cruzeiros para pagar o

aluguel de quarto vencido.


Menos de uma semana depois, Emílio foi ao apartamento de Mattos, justamente quando este estava recebendo


Alice pela primeira vez após três anos sem se verem. O velho queria mais dinhei ro. Como o comissário lhe dissesse

que não tinha, Emílio insinuou que Alice poderia ter. De fato, a pedi do de Mattos, ela assinou um cheque de

quinhentos cruzeiros e o doou ao velho. O comissário o despediu: “Está na hora de ir embora”, e o levou para a sala,

abrindo-lhe a porta a fim de que saísse. Não se viram mais.


A TEORIA DE PÁDUA


O comissário Pádua irritava-se constantemente com Mattos porque este, ao substituí-lo nos plantões,


costumava soltar os vagabundos que ele prendia. Na primeira vez em que isso aconteceu, Pádua pensou até em

matar o colega; porém se controlara ao saber que Mattos era um dos raros pol iciais do Departamento a quem

chamavam de “asa branca”, termo designativo dos que não aceitavam suborno.


Pádua preferiu di scutir sempre com Mattos na esperança de mudar a opinião dele. Repetia mais ou menos o


mesmo “discurso”: prendia qualquer um que estivesse parado numa esquina de madrugada, tachando-o de suspeito;

mais tarde, se a ficha fosse limpa, soltava-o. Chamava isso de medida cautelar. “Aquela treta de santo Tomás de

Aquino de que é preferível absolver cem culpados do que condenar um inocente é conversa mole para boi dormi r.

Puro lero-lero. Não é pensando assim que vamos proteger as pessoas decentes. Você tem medo de quê? Dessa

imprensa de merda corrupta e analfabeta? Desse cascateiro escroto que é o nosso delegado? A cidade está


entregue aos marginais, essas filosofias covardes não passam de justificativas de tiras comodistas que querem fugir

das suas responsabilidades.”


Antes, Mattos ficava nervoso e revidava discordando: agora, ficava entediado, porém não discutia mais.


A PROSTITUIÇÃO


A propósito do “senadinho”, Mattos levantou a hipótese de que poderia fechá-lo, porquanto ali cometia-se o


crime de lenocínio, por estar sendo mantida uma casa de prostituição. Mas, pensava, havia algum mal num bordel?

Em Atenas antiga, a prostituição era livre e os prostíbulos considerados estabelecimentos de utilidade pública. Santo

Agostinho tinha o ponto de vista de que a eliminação das meretrizes seria um mal maior do que deixá-las livres.

Lembrou-se “ dos debates nas aulas de Direito Penal em torno de frases idiotas sobre prostituição que inflamavam

as discussões entre os alunos. Desde criança se sentia atraído pelas prostitutas, conquanto jamais tivesse

freqüentado um bordel. Vieram à sua mente as frases de Weininger, ‘a mulher prostituta é a salvaguarda da mulher

mãe’; de Lecky ‘a prostituta é a custódia da virtude, a eterna sacerdotisa da humanidade’; de Jeannel, ‘ as prostitutas

em uma cidade são tão necessárias quanto os esgotos e as lixeiras’. Um mal inextirpável, mas necessário – quem

dissera isso? Numa associação de idéias recordou a melodia da ária Ah, Fors è lui...”


A LÓGICA


“Mattos, conquanto reconhecesse ser emotivo e impulsivo em demasia, acreditava ter lucidez e perspicácia


suficientes para escapar das clássicas ciladas da investigação criminal, principalmente da ‘armadilha da lógica’. A

lógica era, para ele, uma aliada do policial, um instrumento crítico que, nas análises das situações controversas,

permitia chegar a um conhecimento da verdade. Todavia, assim como existia uma lógica adequada à matemática e

outra à metafísica, uma adequada à filosofia especulativa e outra à pesquisa empírica, havia uma lógica adequada à


criminologia, que nada tinha a ver, porém, com premissas e deduções silogísticas à la Conan Doyle. Na sua lógica, o

conhecimento da verdade e a apreensão da realidade só podiam ser alcançados duvidando-se da própria lógica e

até mesmo da realidade. Ele admirava o ceticismo de Hume e lamentava que suas leituras realizadas na faculdade

não apenas do filósofo escocês, mas também de Berkeley e Hegel, tivessem sido tão superficiais.”


CRIMINOSOS E INDULTO


Diálogo de Rosalvo e Mattos:


“O senhor viu que o presidente vai indultar mais criminosos? Em julho j á foram beneficiados trinta assassinos,


vinte e doi s ladrões, três estelionatários, um macumbeiro e um receptador. O que o senhor acha disto, doutor? Mais

sessenta e tantos criminosos soltos na rua’.


‘El es não deviam nem sequer ter sido presos.’


‘O senhor está falando sério? Acho que o nosso problema é que existem criminosos demais na rua.’


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‘Prender um macumbeiro, um receptador é uma estupidez. O sujeito preso custa um dinheirão à sociedade,


cumpre algum tempo de cadeia e sai pior do que entrou.’


‘Então o senhor acha que nem l adrões nem assassi nos deveriam ser presos? E um tarado estuprador, como o


Febrônio?’


‘Se o sujeito for um risco grande para a sociedade, um criminoso psicopata, coisa assim, aí o cara tem que ser


tratado apenas.’


‘E a família da vítima?’


‘Foda-se a família da vítima. Você fala como se estivéssemos no século XVIII, antes de Feuerbach. A pena


como vingança. Você devia ter estudado melhor esta merda na faculdade.”


3. COMENTÁRIO


“Agosto” é classificado como romance – embora possa lhe caber a classificação de novela, uma vez que


engloba vários conflitos paralelos e vivenciados por personagens comuns a vários deles – apresenta 26 capítulos

que acompanham cronologicamente os primeiros vinte e seis dias do mês de agosto de 1954.


O livro tece uma narrativa ficcional que abrange relatos históricos numerosos e detalhados com exatidão: datas,


locais... Os personagens pertencentes à História recebem envolvimento também imaginário.


A estrutura da parte de ficção se concentra no assassinato de Paulo Machado Gomes de Aguiar e da parte


histórica, no atentado da Rua Tonelero. Este foi cometido com a intenção de matar o jornalista Carlos Lacerda, mas

acabou vitimando fatalmente o Major Vaz, da Aeronáutica, cri me cujos desdobramentos pressionaram o presidente

Getúlio Vargas e o levaram ao suicídio.


O foco narrativo é a visão do próprio autor em terceira pessoa, impessoal e onisciente. Quando são


apresentadas opiniões subjetivas dos personagens, costuma ser usado o discurso indireto livre, misturando primeira

e terceira pessoas.


A Históri a e a ficção têm na intriga policial um elemento comum, muito explorado, objeto de amplo conhecimento


de Rubem Fonseca, que exerceu a função de comissário de polícia na vida real.


O cenário é a cidade do Rio de Janeiro, útero da corrupção. Nela está o Palácio do Catete, morada do


Presidente, uma espécie de túmulo no qual jazem si lenciados os crimes políticos. Nela está o distrito policial, em que

o bem-intencionado Mattos atua com honestidade insufici ente para deter o domínio do crime organizado. Nela está o

hospital, que abriga Alice para jogá-l a à margem com eletrochoque. A única compensação, em toda esta cadeia

negativa, é o apartamento de Mattos, uma pequena ilha, refúgio desprovido de luxo mas rico de arte – os discos de


ópera – , para onde acorrem Alice e Salete, que desejam sobreviver à corrupção, acolhidas por um policial solitário e

solidário.


A trama histórico-política é apresentada de forma documental, fruto de minuciosa pesquisa nas publicações da


imprensa em 1954, sobretudo no mês de agosto. O narrador menciona jornais (Tribuna da Imprensa, O Globo, Última

Hora...) e revistas (Grande Hotel, Revista do Rádio, O Cruzeiro, A Cigarra...)


Não se faz um julgamento da História ou de Vargas. “Agosto” é uma investigação que resgata a memória de um


período da vida pública brasileira.


A trama policial tem como protagonista Mattos, que parece ter pensamentos, sentimentos e procedimentos


autobiográficos do autor: policial intelectualizado, honesto, isento e crítico da corrução, compreensivo com os

marginalizados autores de pequenos delitos – el e libertava os bicheiros de rua – i nadaptado impacientemente ao

meio policial bruto e subornado...


Assim como em “Dom Casmurro”, também em “Agosto” tipos são criados semelhantes a personagens de


ópera: Alice lembra a princesa Isolda (de “Tristão e Isolda”) e Salete, a “La Traviata”, na condição de ex-prostituta.


Parece ter sido intencional atribuir a Mattos o gosto pelas óperas. Sabe-se que a origem delas se relaciona com


tragédia. E esse aspecto trágico se mostra tanto na ficção – Mattos, Sal ete... – quanto na História – Vargas. Os

protagonistas de tragédia sempre procuram o caminho da autenticidade perante si mesmos, mas o destino acaba

destruindo-os.


Como existe o gênero da ópera bufa – que ameniza o trágico pela inserção do cômico –, o livro contém


ingredientes desse tipo de ópera. Por exemplo, Mattos e Salete foram assassinados duas vezes, porquanto dois

matadores, agindo individualmente e em momentos diferentes, assumiram os crimes e receberam recompensas.

Aliás, vem explícita essa tragicômica situação no trecho de ópera cantado pelo sr. Emílio, em italiano, cuja tradução é


a seguinte: “Tudo no mundo é farsa, o homem nasceu farsante, em seu cérebro a razão sempre é ludibriada.(...) Ri

bem quem dá a última risada.”


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O comissário Mattos vai se confi gurando na sucessão dos relatos como a única figura detentora de algum poder

 

que se faz antagônica ao mal. Tanto os contraventores do j ogo de bicho que subornavam quanto os polici ais

subornados tinham a honestidade dele como demonstração de loucura. Sem apoio, impotente para conter a onda

avassaladora do mal, rompeu com a polícia e se decidiu por Sal ete. Neste exato momento, a úlcera perfurou e ele

morreu vítima das forças a que se opôs.

 

É constante na produção literária de Rubem Fonseca a revelação da violência explícita. Em “Agosto”, ela

 

aparece sob a forma brutal ista nas descrições dos matadores em ação. Predomina, porém, o enfoque do ninho da

violência, o estado de corrupção em que vivem os poderosos de grande e de pequeno porte: “toda autoridade

contém de certa forma algo de corrupto e imoral”. Há um desfile de corruptos , desde os políticos desonestos,

passando por industriais metidos em negociatas, até os contraventores do jogo de bicho que subornam policiais

irresponsáveis.

 

Da leitura atenta do livro, pode-se deduzir que o nascedouro da violência está no âmbito político, pois é a

 

violência camuflada, exercida pelos condutores dos destinos do país, preocupados apenas em alcançar o poder com

apoio da imprensa venal que manipula covardemente a opinião pública.

 

É interessante aduzir que, na narrativa histórica, o autor não se posicionou a favor do Governo ou contra ele,

 

porquanto preferi u denunciar a corrupção tanto naqueles que provocavam quanto naqueles que acusavam o “mar de

lama”. Estende, na ficção, essa denúncia ao meio policial. Em ambas as situações “a impunidade sempre será a

testemunha ocular da fragilidade humana”.

 

“Agosto” contém situações com forte ingrediente metafórico. Eis alguns exemplos: o assassinato de Paulo

 

Aguiar (veio à tona tudo o que o rico industrial escondia como representante da alta sociedade apodrecida no meio

de prazeres, “a morte se consumou numa descarga de gozo e de alívio, expelindo resíduos excrementícios e

glandulares – esperma, saliva, urina, fezes”); a reação de Mattos diante da morte de Vargas, quando ele soltou todos

os prisioneiros do distrito ( os verdadeiros criminosos estavam atuando fora da prisão, o que absolvia e tornava

inocentes os pobres coitados dentro dela); a úlcera persistente de Mattos (somatização das contrariedades causadas

pela corrupção com a qual o policial estressado e inadaptado tinha que conviver); o anel do crimi noso que Mattos

carregou (fruto lucrativo da vida marginal que o comissário queria desvendar); o dente de ouro de Mattos que ele

guardava no bolso (precioso, mas frustrante, porque em vez de triturar como seria sua função na boca, estava

arrancado, inútil).

 

Como é típico em Rubem Fonseca, o vocabul ário inclui palavras chulas, grosseiras, agressivas, violentas, como

 

forma de traduzir expressões da realidade sem máscaras. Além disso, ele deu autenticidade à trama histórica,

usando termos políticos eruditos e populares das décadas descritas. Acrescentou vocábulos médicos exatos,

citações cultas, provérbios... A l inguagem dos personagens é fruto do levantamento exaustivo que ele fez da época

focalizada.

 

Este conceituado escritor juizforano confirma em “Agosto” sua excelente performance como minuci oso

 

pesquisador dos temas e ambientes escolhidos, como cronista policial, como contador de histórias desenvolvi das

sob a forma de roteiro cinematográfico, mantendo o paralelismo de situações diversificadas e o “suspense”.

 

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